segunda-feira, 23 de setembro de 2019

O forno do pão



Olho o forno do pão
e acredito que para muitos pode parecer um altar.
Será um sacrifício a sua abertura,
o seu cheiro,
a perspectiva do saciar da fome.

O que não fará um ser com fome ?
Até será capaz de rezar.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Crisântemos e miosótis


Ainda tanto importa
acordar numa manhã pintada de crisântemos
com o cheiro doce da terra ensopada da nebelina,
como adormecer no recato da mais profunda gruta
olhando a ternura das gotas que escorrem
lambendo a pedra húmida
como pequenas pérolas cadentes
daquele céu de pedra.

Em recantos dos caminhos
nascem espontaneamente miosótis;
o Sol cria a luz e a sombra que nos ampara
e as núvens, além de nós,
o branco e o cinzento dos dias.
Daqueles pequenos sóis azuis, além do belo,
apenas a recusa do esquecimento.
Sentem-se risos de criança e sorrisos tardios de velhos.
Tudo nos recorda desejos de vida.

Negam-se olhares de soslaio,
as portas estão abertas e não há sinais de respiração ofegante
mas existem sinais de gente.
Uma amena música soprada pelo vento
afaga-nos os sentidos.
Seria belo assim o nascer e o entardecer.

Ao certo
apenas sabemos que os miosótis ciclicamente irão murchar
e o caminho será novamente escuro e sem memória
até que voltem a nascer espontâneamente
e a beleza e a recordação recuperadas.

Miguel Gomes Coelho

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

O mensageiro do tempo


de Miguel Gomes Coelho

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Ante



Encontrar-nos-emos no campo das mágoas
onde se plantam gritos de desventura
e se abatem as árvores do desejo.
Construiremos um novo relógio
que não meça o tempo
apenas nos diga quantas feridas existem
e quantas faltarão para o embarque final.
Aí, daremos as mãos, fecharemos os olhos
e aguardaremos o remédio dos dias.
Até ao fim. Até ao fim.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019


Mediterraneo

As ondas que batiam
sob o casco duro
pontuavam o sentir da dor e do medo,
os murmúrios rezados ,
o pasmo gritado face ao terror
naquela leva de morte anunciada.

Outras, plenas de espuma,
espraiavam-se junto à costa,
onde havia quem, torturando mentes e corpos,
provocava a revolta à qual,
recusando o dano obsceno do tráfico
ou a impiedade face ao ser humano,
não viravamos as costas
esquecendo os grandes valores.

Dos mais felizes ficavam as pegadas
na areia molhada ou a recordação na pedra dura dos cais,
mas muitos outros tinham já sucumbido
ao fim silencioso e rápido
de quem naufraga num mar também feito de morte,
também feito de mágoa e de memória .

Até Neptuno, se entristecia com tanta frieza.

Até eu, que não acredito em deuses, me revolto e
acabo por ter dificuldade de acreditar também nos homens.

Tertulia "À Margem" , em 4.9.2019, 
apresentação da Poesia de Miguel Gomes Coelho.

A imagem pode conter: Miguel Gomes Coelho

domingo, 1 de setembro de 2019

Fim de tarde

O entardecer está calmo e sem vento.
Do Sol apenas o reflexo do espelhado das janelas.
Até os pombos andam calmamente pelos passeios vazios.
Ecos de uma peça de música clássica assomam de uma janela entreaberta.
Numa varanda alguém lê um livro interessadamente.
O Mundo está calmo por estes lados.
É-se levado a não querer ouvir nem as notícias
não vá o diabo tecê-las...
É-se criminosamente levado a esquecer o que se passa para lá da nossa rua.
Hipocritamente,
fingimos que nos dói o peito quando se sabe do sofrimento.
E na verdade dói de tanta hipocrisia.